sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Dois italianos de vulto: Calvino e Rodari

Atraída, quase sempre, pelo imediato, a crítica de livros infantis e juvenis (e não apenas esta) tende, por vezes, a esquecer as grandes vozes de referência, sobretudo quando já só temos a possibilidade de escutar os seus ecos, consubstanciados nos belos livros que nos legaram. Mas que ecos!, dir-se-ia. Lembrarei, por isso, duas dessas vozes – as quais nunca permitiram, acrescente-se, que a sua intervenção artística surgisse dissociada de uma qualificada acção cívica e política com ressonância pública (coisa que, salvo honrosas excepções, parece cada vez mais em desuso, neste tempo de mentes entorpecidas que é o nosso).  

A primeira é a de um dos maiores escritores do século XX, Italo Calvino (1923-1985), de que recordo aqui Um Mistério no Labirinto (Teorema, 2002). A acção poderia ser assim sumariada: vindo da guerra, o rei Clodoveu dirige-se para a capital, Arvoreburgo. Ansioso por chegar, depara com um bosque tão espesso que o impede de encontrar o caminho. Na cidade, a rainha e o primeiro-ministro conspiram contra ele. A princesa suspira pela chegada do pai, enquanto vê a cidade, sitiada pelo bosque, despir-se paradoxalmente de árvores e plantas. Ao adensar-se em torno da muralha, a floresta converte o percurso destas e doutras personagens em errância desesperada num labirinto, onde se invertem as relações entre cimo e base, ramos e raízes.

Cegueira e lucidez, ambição e amor, esterilidade e fecundidade são alguns dos temas desta enigmática história de final feliz, bem traduzida por Colaço Barreiros, na qual ecoam velhos mitos, contos tradicionais e narrativas de raiz medieval – um universo de que Calvino foi aliás um apaixonado conhecedor. Para crianças – ou para todos?

A segunda voz em apreço é a de Gianni Rodari (1920-1980), contemporâneo de Calvino, e o título a lembrar é Histórias ao Telefone (2ª ed., Teorema, 1999).

Sendo embora um dos autores estrangeiros da chamada literatura para a infância mais traduzidos em Portugal, estou convicto que Gianni Rodari (Prémio Hans Christian Andersen em 1970) continua a ser, infelizmente, um nome apenas conhecido de uma minoria de leitores infantis. Novas Histórias ao Telefone (Teorema, 1987) e Pequenos Vagabundos (Caminho, 1986) contam-se entre os seus títulos publicados em português, aos quais deveremos juntar a fundamental Gramática da Fantasia (Caminho, 1993), dirigida ao público adulto, razoavelmente lida por professores e promotores da leitura, e por isso talvez a sua obra de maior sucesso no nosso país.

Este último livro resulta da longa experiência de educador e animador vivida por Rodari na Itália das décadas que se seguiram à 2ª Guerra, época em que foi cronista do jornal L’Unitá e fundou e dirigiu o Pionere, um semanário infantil de inspiração democrática. Gramática da Fantasia, por seu turno, aborda, nas palavras do autor, «alguns modos de inventar histórias para crianças e de ajudar as crianças a inventarem sozinhas as suas histórias», na perspectiva de «quem acredita na necessidade de a imaginação ter o seu lugar na educação» e de «quem sabe o valor de libertação que pode ter a palavra».

Não é por acaso que refiro esta obra. Com efeito, Histórias ao Telefone resulta em parte da aplicação prática de princípios e técnicas enunciados em Gramática da Fantasia, que se encontram na base daquilo a que alguns críticos têm chamado o «fantástico rodariano». De forma necessariamente sumária, apontarei alguns dos seus traços distintivos: enredos breves que nos apresentam mundos surpreendentes, por vezes gerados a partir da descoberta de sentidos ocultos em certas palavras, frases feitas e provérbios, ou em neologismos formados a partir de outros bem conhecidos, como acontece com o «Extrageneral» e o «Mortechal», o «des-país» e o «descanhão» («o contrário do canhão», pois «serve para desfazer a guerra», p. 25). O humor quase corrosivo e os retratos críticos da sociedade italiana raramente estão ausentes dos contos de Rodari, os quais trilham com frequência os caminhos de um nonsense nunca gratuito e que colhe inspiração no surrealismo. Ao estimular reflexões sobre a comunicação e sobre a palavra, aqui e acolá evocando, de modo divertido, personagens dos velhos contos tradicionais para crianças, e fazendo apelo ao que, na alma infantil, existe de irredutível à ordem adulta, cada uma destas 34 histórias que o caixeiro Bianchi contava à filha pelo telefone – dado que se encontrava permanentemente em viagem – revela-se como um prodígio de imaginação. Para que as chamadas não fossem muito demoradas, as narrativas tinham de ser curtas e quase todas eram tão surpreendentes como a história de «O país sem ponta», onde aqueles que infringiam as leis eram condenados a esbofetear polícias: «É claro que é injusto, é claro que é terrível – disse o polícia. – A coisa é tão odiosa que as pessoas, para não serem obrigadas a esbofetear os pobrezinhos sem culpa, evitam a todo o custo fazer seja o que for contra a lei» (p. 22).    

 José António Gomes 

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)