segunda-feira, 23 de março de 2009

Recordar Leonor Praça e o seu álbum Tucha e Bicó

Originalmente editado em 1969, como o primeiro volume da colecção de O Século «Pim-Pam-Pum», e, posteriormente, alvo de reedição na Plátano, numa colecção dedicada a Leonor Praça, onde se incluem obras marcantes como Rama, o Elefante Azul (1970), de Isabel da Nóbrega ou O Veado Florido (1972), de António Torrado, Tucha e Bicó (1969) constitui um marco relevante no panorama literário português no que ao público infantil diz respeito.

Desde logo, pela filiação no género do álbum narrativo, praticamente desconhecido em Portugal naquela altura, mas que, na Europa e nos Estados-Unidos, exactamente nesta época, ia revelando todas as suas potencialidades. Mas também pela dimensão lúdica que percorre o livro, centrado nas actividades levadas a cabo por duas crianças de 3 e 4 anos, com especial destaque para os brinquedos e as brincadeiras, os passeios e as férias, a escola e a família e que influenciará criadoras como Maria Keil e Manuela Bacelar.

Destinada a leitores muito pequenos, a narrativa é protagonizada pelos dois irmãos que emprestam o nome ao livro, e narrada pela menina, dando conta, num discurso de primeira pessoa, assumidamente infantil, da realidade vivida pelas duas crianças, com especial atenção para a vida familiar, as suas rotinas e actividades marcantes. Promovendo a identificação por parte dos leitores, que se reconhecem no universo recriado, assim como nas personalidades dos dois pequenos irmãos, o livro estimula a observação das imagens e a forma como elas completam um texto marcado pela brevidade, simplicidade e contenção. Caracterizado pela sequência de frases afirmativas que, a cada virar de página, se vão sucedendo, o texto não apresenta uma estrutura narrativa de tipo tradicional. Aliás, isento de conectores de qualquer tipo que esclareçam relações de sentido ou de causalidade entre as afirmações, o texto caracteriza-se, por esse facto, por uma certa aproximação ao discurso infantil, linear e aditivo, obrigando o leitor à realização de inferências de modo a estabelecer ligações semânticas e sintácticas entre as frases, criando, assim, nexos de lógica. Em alguns casos, a cumplicidade entre o texto e as imagens é tal que os deícticos, como é o caso do determinante demonstrativo «estes», apontam para a mensagem pictórica e, logo, extratextual.

Actuando em complemento do texto, as ilustrações não só pormenorizam a informação que ele disponibiliza como, em alguns casos, colaboram no preenchimento dos espaços em branco que ela integra, condicionando, pelo menos em parte, a leitura. Veja-se, por exemplo, o caso da frase «O meu irmão tem muitos brinquedos engraçados.» que, sem especificar de que tipo de brinquedos se trata, solicita uma resposta da imagem, identificando pelo menos alguns deles e orientando, desta forma, a interpretação do leitor.

Neste caso, como em outros, a leitura realizada resulta, como o mostraram Lawrence Sipe ou Maria Nikolajeva, do cruzamento de informações oriundas de duas linguagens distintas, actuando em relação sinérgica e potenciando-se mutuamente. O final do álbum exige o mesmo tipo de inferências. A afirmação «À noite estamos cansados de brincar… Boa noite!», com que o livro termina, não só conclui uma longa enumeração de actividades realizadas pelas duas crianças, como permite perceber, também com a colaboração das imagens que representam os dois irmãos em trajes de noite, que chegou a hora de dormir, parecendo, deste modo, fechar um ciclo de acção com o necessário descanso. Estimula, além disso, uma certa sugestão dialogal com o leitor, activamente implicado pela fórmula de despedida com que o livro encerra, marcando o fim da leitura e da história, mas também o fim do dia e da agitação que o caracteriza.

Com recurso a uma técnica muito simples, baseada no desenho do contorno e no preenchimento, a cor, talvez com caneta de feltro, dos espaços, a ilustradora explora as sugestões de expressividade sugeridas pelos rostos e posturas das personagens, ao mesmo tempo que joga com padrões e motivos cromaticamente muito fortes, como os fundos e as grandes manchas, criando contrastes visualmente muito apelativos, mas mantendo a sugestão de ingenuidade que também caracteriza o texto.

Precocemente desaparecida, vítima de doença, aos 34 anos de idade, Leonor Praça é ainda responsável pela ilustração, nas edições Europa-América, de duas obras de Alves Redol, A flor vai pescar num bote (1968) e A flor vai ver o mar (1968), assim como pelas imagens dos já mencionados livros de Isabel da Nóbrega e António Torrado ou ainda de A Maria Bé e o finório Zé Tomé (Plátano, 1974), de Manuel Ferreira. A pintora, nascida no Porto em 1936, estreou-se, com uma exposição individual, em 1949 e participou em numerosas exposições colectivas tendo deixado parte significativa da sua obra inédita.

 

Ficha bibliográfica

 

PRAÇA, Leonor (1969). Tucha e Bicó, Lisboa: O Século, col. Pim-Pam-Pum (nº 1)

 

Ana Margarida Ramos

Universidade de Aveiro;

membro associado do NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)