sábado, 25 de julho de 2009

Saint-Exupéry: Contra o mundo das adições

Retiro da estante a minha velha edição de O Principezinho. Não refere data de publicação. Apenas me permite saber que se trata da 6.ª edição, com chancela da extinta Editorial Aster, em tradução assinada por uma voz, injustamente esquecida, da chamada literatura para crianças: Alice Gomes, poeta, autora de ficções e textos dramáticos, unida por laços familiares a dois outros vultos da escrita: Soeiro Pereira Gomes, seu irmão, e Adolfo Casais Monteiro, o marido.

Folheio o livro já amarelecido pelos anos e abro-o numa página ao acaso, justamente na passagem em que o Principezinho exprime a sua revolta contra os homens que apenas sabem fazer adições e nunca conheceram o prazer de aspirar o perfume de uma flor (pp. 28-30). Atentando na actualidade dessas palavras (e da obra de Saint-Exupéry), não consigo deixar de associar tal meditação a uma frase sobre os personagens que, na Europa de hoje, dominam a economia e a política. Escrita por Czeslaw Milosz, descubro-a numa crónica de Eduardo Prado Coelho («O velho continente», Público, 6/7/2000): «Estes homens de negócios com olhares nulos e sorrisos atrofiados… Foi a estes vermes que veio desembocar uma tão delicada e complexa civilização?»

O autor de Vol de Nuit foi, talvez, um dos derradeiros representantes dessa civilização e O Principezinho, além de poder ser lido como crítica ao envelhecimento do espírito e ao agressivo materialismo tecnocrático, anti-ecológico, do mundo contemporâneo, é também uma exaltação, já ferida pela melancolia, do valor dos ritos e da arte de construir afectos («Só há um luxo verdadeiro: o das relações humanas» – escreveu um dia o autor). Mas O Principezinho parece ser, acima de tudo, um canto à magia da infância que subsiste em cada adulto e que os anos não deveriam esboroar.

Talvez por tudo isto, não estejamos propriamente ante um livro para crianças. A dedicatória – «A Léon Werth quando era rapazinho» – parece confirmá-lo: «Quero dedicar este livro à criança que foi outrora essa pessoa crescida» (…) porque «todas as pessoas crescidas foram primeiro crianças» (p. 7).

Essa é, aliás, a única razão que encontro para o facto de o meu livro manter três flores, que o tempo secou, entre as já citadas páginas de censura aos «homens sérios», os que nunca aspiraram o perfume de uma flor nem contemplaram uma estrela. Impulso do adolescente que fui? Derradeiros traços desse período do fim da juventude em que descobri a obra de Saint-Exupéry? Talvez. Mas, precisamente porque não me olho ainda como um homem demasiado sério e entregue ao «mundo das adições», fecho O Principezinho e conservo as flores secas guardadas entre as suas páginas.

Uma última nota, quase deslocada neste testemunho: já se terá reparado que, sem as ingénuas aguarelas do autor, o texto de Saint-Exupéry era outra coisa? Na esteira de Beatrix Potter e de alguns outros, Saint-Ex, esse terno moralista, era quase um moderno e, conquanto não tenha produzido um picture story book, prenunciava, com o seu livro, a actual gramática do género, ou seja, a de uma narrativa construída segundo um princípio de articulação e complementaridade entre palavra e imagem.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

domingo, 12 de julho de 2009

O Sofá Estampado, de Lygia Bojunga Nunes

Embora tenham sido editados no nosso país, escritores brasileiros como Lygia Bojunga Nunes, Ana Maria Machado, Ruth Rocha ou Ziraldo não lograram ainda atrair a atenção que as suas obras inquestionavelmente merecem.

Na comunidade dos países de língua oficial portuguesa, o nome de Lygia Bojunga Nunes assume relevo especial, por se tratar do primeiro autor deste imenso espaço linguístico contemplado com a distinção internacional de maior prestígio no domínio da literatura para a infância e juventude: o Prémio Hans Christian Andersen (de 1982), atribuído pelo International Board on Books for Young People.

Após Corda Bamba (Lisboa: Caravela, 1988) e A Bolsa Amarela (Porto: Edinter, 1989), viria a lume O Sofá Estampado (Lisboa: Verbo, 1992; ilustrações de Cristina Malaquias), cujo texto, na edição portuguesa, surge fixado por Natércia Rocha – escritora, crítica e historiadora da literatura para a infância que, entre nós, desenvolveu um louvável trabalho, praticamente solitário, de divulgação da obra da escritora brasileira.

Em O Sofá Estampado, Lygia apresenta a história de Vítor, um jovem tatu tímido e inseguro, com dificuldade em impor-se num mundo que constantemente o agride e que não parece feito à sua medida. O problema agudiza-se perante Dalva, a gata angorá por quem se apaixona. Passando todo o tempo diante da televisão, Dalva vive numa desatenção exasperante em relação ao que se passa em seu redor. Em situações críticas como esta, Vítor tosse até quase sufocar e escava buracos no solo que o levam a viajar até tempos e espaços que marcaram a sua vida passada.

Este dispositivo ora permite o aparecimento de analepses explicativas, ora abre caminho rumo a outras histórias de vida, protagonizadas por personagens cujos caminhos se cruzaram, de uma forma ou de outra, com o do jovem tatu: sua Avó, Dona Popó, o Inventor, Dalva... Do contacto com as experiências de todos eles se vai nutrindo a personalidade que Vítor (o protagonista-animal-menino) a pouco e pouco constrói. À medida que cresce e aprende o mundo, socializa-se e sofre, num teatro de sentimentos e conflitos de assinalável riqueza em termos humanos (porque é da condição humana que aqui se fala, pese embora o herói ser um animal).

Da história o leitor guardará, sem dúvida, uma nota de esperança sobre a construção de uma identidade pessoal. A ela se sobrepõe, contudo, a consciência da complexidade da vida. E aí reside, enfim, o sentido educativo da obra. Recusando a simplificação e encaixando, na narração de uma via dolorosa e comovente, sequências extraordinariamente divertidas, O Sofá Estampado é bem um exemplo daquilo a que Natércia Rocha, no prefácio a Corda Bamba, chama «uma imaginação rica, colorida, com raízes no real mas não perdendo o contacto com o sonho, a reflexão interior, a aventura do viver futuro».

Ultrapassadas as primeiras páginas, o leitor percebe que não se encontra apenas perante mais uma história simplista de animais humanizados (e no entanto, as preocupações de ordem ambiental marcam presença), mas sim a ler um texto que, na sua extraordinária economia de meios, o confronta com um complexo de tópicos em que avultam a identidade e a alteridade, o isolamento e a socialização, a regressão e o crescimento, a morte e o desejo.

Se a isto se acrescentar a evidência de um estilo trabalhado com saber e minúcia, que aproxima o discurso escrito de um registo próximo do da narração oral, fácil será concluir que nos encontramos perante um livro de invulgar qualidade.

José António Gomes

NELA (Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)