quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Francisco Duarte Mangas, domador de palavras

Se me perguntarem sobre que é este Sílvio, Domador de Caracóis (Caminho, 2010), livro de Francisco Duarte Mangas (texto) 1 e Madalena Moniz (ilustrações), dificilmente saberei dizê-lo. E livros como este são, em geral, os que me atraem. Aqueles que guardam em si qualquer coisa de indefinível, de irresumível, de imparafraseável, livros cuja teia de sentidos possíveis parece torná-los irredutíveis à moldura crítica.

Trata-se de um livro sobre a amorosa e terna relação entre uma mãe e o seu filho pequeno, curioso e descobridor? Sim e não. É sobre a conversa entre ambos, funcionando como lição sobre a liberdade e a poesia, mas também sobre os constrangimentos da vida? É e não é. É sobre os sonhos irrealizáveis das crianças? É e não é (até porque tenho dúvidas de que alguns deles sejam irrealizáveis…). É sobre o desconsolo da vida adulta, em que a imaginação infantil se afigura por vezes deslocada e perigosa? É e não é. Insinua-se como exemplo de ecopoesia? Sim e não. É sobre a paixão pela mãe Natureza (vemos, com efeito, uma mãe – que, até certo ponto, constitui um reflexo especular da Natureza – e um filho, chamado Sílvio 2, que edipianamente a ama), insinuada numa conversa em torno do fascínio pelos seres e coisas que conformam o mundo natural? (E este foi sempre um dos tópicos de eleição de Francisco Duarte Mangas, em especial naquele aspecto em que tal paixão o conduz, depois, à ternura filial por esses outros «seres vivos» que são as palavras 3. Uma atracção, em suma, pelas suas misteriosas combinações, susceptíveis de edificar mundos possíveis: «cultivar palavras no jardim», ser «domador de caracóis», «carteiro das toupeiras», «arquitecto das cegonhas»…) É sobre tudo isto? É e não é. Encontramos neste livro uma tentativa de conferir materialidade a algumas sedutoras metáforas? Sim e não. É uma meditação sobre a condição de poeta – que Sílvio, no fundo é, porque pretende vir a «cultivar palavras»? Talvez seja, talvez não. É uma narrativa breve ou um breve texto dramático? Possui elementos, é certo, que a ambos os modos pertencem, mas não é uma coisa nem outra, a ambos fugindo para, definitivamente, se instalar no limbo da poesia. É um texto de desarmante simplicidade? É e não é, porque é tão simples quanto denso. É um livro para crianças? Não tenho a menor dúvida que seja. Mas é, também, daqueles livros a que um leitor literário, adulto, não resiste. Daqueles livros que certos adultos podem ler com um gosto imenso, sem se lembrarem de que estão a ler um livro para crianças.

É tudo isto que torna o pequeno grande livro de Francisco Duarte Mangas e Madalena Moniz num objecto simultaneamente simples e complexo, notável de leveza e de densidade (e, quando digo leveza, estou a falar obviamente daquela a que se refere Italo Calvino 4). Um livro que, além do mais, desperta em nós a memória de certas composições, de estrutura dialogal, quer do cancioneiro popular quer das cantigas de amigo medievais, galaico-portuguesas, em que mãe e filha conversam, quer ainda de vários poemas infantis de Eugénio de Andrade e de Matilde Rosa Araújo, e, principalmente, a memória de algumas Canciones (1921-1924) de Federico García Lorca, em especial as Canciones para Niños, como a «Canción tonta» ou a «Cancioncilla sevillana» 5 (e são bem conhecidos os ecos do andaluz na poética do autor de O Ladrão de Palavras que, como todos os poetas dignos desse nome, sabe que a infância é a terra onde germina a poesia – como também Lorca sabia).

Tomando em mãos esta breve mas admirável composição de Francisco Duarte Mangas, a ilustradora Madalena Moniz transformou-a num álbum. Um álbum entre o poético e o narrativo, onde a Natureza respira e respiram também os olhos do leitor, um álbum onde os tons de verde se revestem de importância fundamental, concordante com a possível intencionalidade do texto, e a que nem sequer faltam certos elementos desse paradigma simétrico do picture story book, a que obedecem alguns dos mais bem-amados álbuns narrativos para crianças 6 (verifica-se certa circularidade no texto que, por outro lado, repousa, do princípio ao fim, numa estrutura dialogal 7 mais ou menos repetitiva).

Recorrendo com mestria ao lápis de cor, numa ilustração cujo traço evidencia originalidade e frescura, além de sensibilidade para traduzir a dimensão psicológica, a ilustradora desenha a própria letra utilizada no livro, conferindo à obra um cariz artesanal, conforme com a componente semantico-pragmática do texto de Francisco Duarte Mangas.

Uma parceria feliz, em suma, para uma obra feliz, uma obra que revaloriza a imaginação e os seus poderes e que insta a uma reconciliação com uma Natureza em perigo; um livro na «margem da alegria», necessário para o tempo tristíssimo e cheio de equívocos morais e ideológicos em que vivemos; um livro que convida a pensar, que estimula na criança o pensamento divergente e do qual, não tenho dúvidas, os leitores infantis (e os adultos também) vão gostar.

José António Gomes

(NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto)

Notas

1 Nascido em Rossas (Vieira do Minho), em 1960, jornalista de profissão, romancista premiado (Diário de Link, Teorema, 1993; Geografia do Medo, Teorema, 1997; A Morte do Dali, Teorema, 2001; O Coração Transido dos Mouros, Teorema, 2002, etc.), contista e poeta (Pequeno Livro da Terra, Teorema, 1996; Transumância, Campo das Letras, 2002, etc.), Francisco Duarte Mangas é já autor de uma obra considerável no domínio da literatura para a infância, repartida pelo conto, pelo conto em formato de álbum e pela poesia: Elefantezinho Verde (Elefante Editores, 1999; 2.ª ed., Campo das Letras, 2001), O Gato Karl (Caminho, 2005), O Ladrão de Palavras (Caminho, 2006), O Noitibó, a Gralha e Outros Bichos (Caminho, 2009), além de Breviário do Sol (Caminho, 2002) e Breviário da Água (Caminho, 2004), ambos em co-autoria com João Pedro Mésseder. Vários dos seus livros para adultos foram traduzidos e editados em Espanha e na Itália.

2 Nome de evidentes conotações simbólicas, já que, como ensinam os dicionários, silv(i)… é um elemento latino de composição de palavras que exprime a ideia de selva, floresta, mata (v. J. Almeida Costa e A. Sampaio e Melo et alii. Dicionário da Língua Portuguesa. 5.ª ed., Porto: Porto Editora, s.d., p. 83.). Sílvio, o protagonista deste livro, deseja, entre outras profissões sonhadas, vir a ser «médico das árvores», tratar-lhes do coração, e ama a floresta e os seres, por assim dizer, selvagens.

3 Leia-se esta passagem do texto: «(…) Vou cultivar palavras no jardim, sempre foi esse o meu sonho. || Que palavras? – diz a mãe. || A palavra “Verão”, a palavra “sede”, a palavra “golfinho”… || Bebem muita água, gastam muito adubo – diz a mãe. || Adubo?! || O fertilizante das palavras é a ternura, Sílvio – diz a mãe. || E que água bebem? || A água pura dos teus olhos – diz a mãe. || A ternura é toda para ti, mãe.»

4 Italo Calvino. Seis Propostas para o Próximo Milénio. Lisboa: Teorema, s.d. (originalmente editado em Itália, em 1990). pp. 15-44.

5 Canción tonta: «Mamá, / yo quiero ser de plata. / Hijo, / tendrás mucho frío. / Mamá. / Yo quiero ser de agua. / Hijo, / tendrás mucho frío. / Mamá. / Bórdame en tu almohada. / ¡Eso sí! / ¡Ahora mismo!» – http://users.fulladsl.be/spb1667/cultural/lorca/canciones/canciones_para_ninos/cancion_tonta.html (acedido em 5/11/2010); Cancioncilla sevillana: «Amanecía en el naranjel. / Abejitas de oro / buscaban la miel. // ¿Dónde estará / la miel? // Está en la flor azul, / Isabel. / En la flor, / del romero aquel. // (Sillita de oro / para el moro. / Silla de oropel / para su mujer.) // Amanecía / en el naranjel.» –http://users.fulladsl.be/spb1667/cultural/lorca/canciones/canciones_para_ninos/cancioncilla_sevillana.html (acedido em 5/11/2010).

6 O «symmetrical picture storybook paradigm» é estudado por Eve Heidi Bine-Stock em How to Write a Children’s Picture Book: Learning from The Very Hungry Caterpillar, Chicka Chicka Boom Boom, Corduroy, Where the Wild Things Are, The Carrot Seed, Good Night, Gorilla, Sylvester and the Magic Pebble and Other Favorite Stories. USA: Lightning Source | Ingram and Baker & Taylor, E & E Publishing, 2003 (sumário disponível em http://www.eandegroup.com/Publishing/How-to-Write.html (acedido em 30-3-2009)).

7 Recorde-se que o modo dialogal sempre conheceu larga fortuna na literatura para a infância desde os seus primórdios, quer enquanto forma privilegiada, e mais viva, de transmissão de noções edificantes quer assumindo a forma de diálogos autónomos, sem didascálias (ou quase), incorporados no tecido narrativo – releia-se, por exemplo, a Condessa de Ségur; imagine-se os Diálogos entre uma Avó e sua Neta, de Mathilde de Sant’Anna e Vasconcellos (volume publicado em 1862 que Henrique Marques Júnior, em Algumas Achegas para uma Bibliografia Infantil (1928), afirma não ter conseguido consultar); e lembre-se certos textos de Virgínia de Castro e Almeida (exemplo: Em Pleno Azul (1.ª ed., 1907). 11.ª ed., Lisboa: Clássica Editora, 1988, pp. 72-78, 113-114 e outras) e de Ana de Castro Osório (exemplo: Viagens Aventurosas de Felício e Felizarda ao Brasil (1.ª ed., 1923). Lisboa: Instituto Piaget, 1998, pp. 83-88 e outras). Saindo do âmbito do livro infantil, mas indo às raízes do modo dialogal em literatura, mencione-se por exemplo o modelo estabelecido pelos Diálogos de Platão ou o cultivo, no período barroco, dos livros de diálogos sobre a vida na corte ou de índole moral – e não só, já que os temas abordados poderiam ir da crítica social à crítica literária (releia-se, para só referir dois exemplos da literatura portuguesa do século XVII, Francisco Rodrigues Lobo e a sua Corte na Aldeia (1619) ou D. Francisco Manuel de Melo e os seus Apólogos Dialogais (1721), de publicação póstuma).