quinta-feira, 7 de julho de 2011

Mário Castrim, à beira dos 91 anos do seu nascimento

Manuel Nunes da Fonseca, que assinava com o pseudónimo de Mário Castrim, nasceu em Ílhavo, em 31 de Julho de 1920, e morreu em Lisboa, a 15 de Outubro de 2002. A sua relevante intervenção escrita como crítico de televisão (durante anos a fio, foi o único digno desse nome, primeiro no saudoso Diário de Lisboa, mais tarde no Tal & Qual) sempre deixou injustamente na sombra uma escrita literária de inegável valor, que se repartiu, no caso da literatura para os mais novos, pela narrativa juvenil, por uma poesia de cunho experimental, e pelo conto. Era um caso – curioso, dirão alguns – de católico comunista (também os há), que, segundo cremos, prezava valores essenciais e generosos do cristianismo e, por isso, não se eximia de criticar um certo folclorismo alienante, pouco culto e pretensamente religioso de que padecem algumas instituições da Igreja. Exemplo disso é o pequeno romance juvenil de Castrim, A Caminho de Fátima (Caminho, 1992, col. «De par em par», ilustrações a preto e branco de José Miguel Ribeiro, 124 págs.), que nos propomos reler, como forma também de assinalar a próxima celebração dos noventa e um anos de nascimento do Autor.

Em primeiro lugar, a leitura de A Caminho de Fátima reconforta-nos. Afinal o humor confirma presença nos livros portugueses para jovens. Senão, vejamos.

Esta é uma história que pretende «dizer coisas sérias a brincar» – como se pode ler no peritexto da contracapa do livro. O enredo é simples: três idosas senhoras de Lisboa (D. Rosália, Céu e Fani) decidem empreender uma viagem a Fátima, num «dois cavalos» baptizado de Trolaró e surrealisticamente resistente ao peso de sete pessoas e um cão. Viajam na companhia de uma rapariguinha desempoeirada (Maria João, sobrinha de D. Céu), de um rapazito viciado na leitura (José Carlos), da dr.ª Ester e do seu apopléctico cônjuge, um capitão reformado da marinha mercante, de seu nome Florêncio. Neste reside a justificação «oficial» para a viagem: a mulher necessita de pagar uma promessa, devida pelo restabelecimento da saúde do marido, acometido, tempos antes, de um ameaço de acidente cardiovascular.

Durante um curto período de tempo, junta-se ao grupo um simpático ladrão, chamado Mãozinhas. A sua entrada no «dois cavalos» vem pôr, ainda mais, à prova a inacreditável capacidade de resistência do veículo, transformado em insólito mini-autocarro.

No entanto, o que, para uns, parece ser o pagamento de uma promessa e, para outros, um divertido passeio acaba por se tornar numa via-sacra para o contrariado capitão, mercê da inépcia automobilística da condutora e de uma irreprimível tendência, de quase todas as personagens, para converterem a viagem numa romagem gastronómica. Percalços vários e atrasos sucessivos acabam por fazer gorar o objectivo primeiro da jornada e os «peregrinos» não passam de Alcobaça. O regresso a Lisboa será, igualmente, atribulado, mas tudo acabará em bem, com a particularidade de o capitão, arrependido, se reconciliar com a irreverente, mas sensível, Maria João, cuja liberdade de linguagem e «desrespeitosa» familiaridade de trato o haviam apoquentado durante todo o percurso.

Uma obra com estas características teria forçosamente de investir no discurso directo e no rápido progredir da acção, a que vem aliar-se alguma variedade de processos narrativos, já que a carta (no final) e o monólogo interior (no 7.º capítulo) alternam com a narração convencional, sem, no entanto, complexificarem o relato em demasia.

Com o cómico de linguagem, de personagem e, sobretudo, de situações procura-se, logo desde o início, desmistificar o objectivo «oficial» da viagem, dessacralizando-o e, de certo modo, ridicularizando-o. A espiritualidade imperceptível dos «peregrinos», se existe, sucumbe sob o peso de diversos e contraditórios (pequenos) interesses de ordem material. Ao de cima vem, pois, o conjunto dos humanos pecadilhos de uma pequena burguesia urbana caricatural, sobre os quais deixamos cair, no final, o pano da nossa sorridente complacência.

Não se esgota nesta temática o texto de Mário Castrim. Contudo, é ela que fundamentalmente nos interessa, por suscitar a questão do humor nos livros juvenis. Nestes, torna-se, por vezes, difícil perceber onde começa e acaba o que diz respeito à criança ou ao jovem e o que só o adulto estaria em condições de compreender. Para além da idade, muita da capacidade de compreensão do humor depende da maturidade da criança, do seu ambiente familiar, da sua cultura e da sua competência linguística e comunicativa. Podemos dizer, com Jacqueline Held (1980: 184), que «se o livro “infantil” não é obra totalmente artificial e pré-fabricada, o autor escreve porque tem algo a dizer: vive a sua história e deixa-se levar. Acontecerá, então, fatalmente que aparecerá na história uma referência adulta, a que chamaremos “piscadela”. Seria forçosamente um mal e seria sempre preciso suprimir essa referência?» Estamos em crer que não, desde que não seja excessiva.

Tais excessos não se verificam no livro de Mário Castrim. Sorrimos em diversas passagens do texto e estamos certos que ele fará também sorrir muitos dos seus leitores mais jovens. Como é óbvio, não necessariamente pela mesma ordem de razões.

José Miguel Ribeiro, o principal representante do humor na ilustração portuguesa de livros infantis, assina imagens a preto e branco que amplificam o potencial humorístico do texto e que, como sempre, nos fazem sorrir.

Referência bibliográfica

HELD, Jacqueline (1980). O Imaginário no Poder: As crianças e a literatura fantástica. 2.ª ed., São Paulo: Summus Editorial.

José António Gomes

NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto