quarta-feira, 21 de março de 2012

Dois textos dramáticos: Doze de Inglaterra seguido de O Guarda-Vento, de António Torrado

Em António Torrado, encontramos um dos mais talentosos representantes de uma tendência da nossa literatura para crianças em que o humor e a crítica a comportamentos sociais se conjugam, em aliança com uma escrita saborosíssima e de elevada qualidade literária (leia-se, por exemplo, Pinguim em Fundo Branco, 1973, O Jardim Zoológico em Casa, 1975, O Elefante não Entra na Jogada, 1985, Da Rua do Contador para a Rua do Ouvidor, 1990, ou Caidé, 2.ª ed., 1998, para não falar das dezenas de títulos posteriormente editados). Lida em voz alta, esta prosa de estilo vigiado, consciente da sua riqueza de recursos, cativa pelo sabor de conto oral que a torna peculiar, sabendo como poucas aliar as situações cómicas à crítica (veja-se O Pajem não se Cala, 1981), da qual ressalta notável poder de observação do real. Excelente contista, poeta (Versos de Pé Folgado, 1979, O Livro das Sete Cores, 1983, este último em coautoria com Maria Alberta Menéres, e vários outros títulos) e dramaturgo (Hoje Há Palhaços, 1976 — também com Maria Alberta Menéres —, O Adorável Homem das Neves, 1984, Zaca-Zaca, 1987, Toca e Foge ou a Flauta sem Mágica, 1992, Teatro às Três Pancadas, 1995), Torrado afirma-se como uma das figuras de relevo da nossa literatura contemporânea, publicando em paralelo importantes textos de reflexão pedagógica, além de textos para adultos. Estes surgem imbuídos dos mesmos valores positivos que transparecem nos seus criativos recontos de histórias populares, e nos seus inúmeros contos e fábulas.

Em Doze de Inglaterra seguido de O Guarda-vento (Caminho, 1999), que aqui é evocado, encontramos duas peças de teatro para crianças e jovens ou, como Torrado prefere dizer, «para todos». Na primeira, levada à cena pela Comuna Teatro de Pesquisa em 1998, o autor preenche, por assim dizer, os espaços em branco do episódio de Magriço e os Doze de Inglaterra, narrado pelo marinheiro Fernão Veloso no canto VI de Os Lusíadas. Dizemos «espaços em branco», pois, como é sabido, Álvaro Gonçalves Coutinho, o Magriço — que se desloca a Inglaterra com os seus companheiros de armas para «desafrontar as ofendidas damas inglesas» a pedido do Duque de Lencastre — opta por fazer a viagem por terra ao contrário dos outros portugueses que se deslocarão por via marítima. Ora, não fornecendo Camões pormenores sobre a viagem do Magriço, abre margem para que sobre esse percurso se fantasie e se fundamente, assim, o merecido cabimento do jovem cavaleiro no grupo de bravos que, de peito feito, irão repor a honra das nobres inglesas.

E perguntar-se-á: o que habilita Magriço a conduzir à vitória, em torneio, o lado português, ele que, no início, nem cavaleiro era, não revelando tão pouco os dotes físicos necessários a tão dificultosa empresa. É o próprio autor quem nos elucida em texto de apresentação: «Como em todos os trajetos de iniciação, Magriço vai defrontar-se com as alegorias do crescimento e da maturação típicas dos romances de cavalaria. Não será uma viagem real por território europeu, mas uma viagem iniciática, pontuada por estações ou situações, donde o Magriço, sucessivamente vencedor, colherá sabedoria e força, para acometer a prova final, o torneio» (pp. 15-16). A primeira peça do livro conta, pois, a história de um percurso probatório, do qual não está ausente o humor, em ambiente fantástico povoado de anões, velhos, ninfas e animais falantes.

A simpatia de Torrado por heróis de aparência mais fraca que, em ação e em espírito, revelam a sua superioridade moral (lição aprendida da narrativa popular que o autor conhece como poucos e da qual nos deu numerosos recontos) é comum à primeira peça e à segunda, «O Guarda-Vento». Esta última parte da centralidade teatral da porta de batentes de uma enfermaria que separa dois espaços: o visível, onde decorre a ação principal, e o invisível, onde jaz, enfermo, um príncipe de dez anos, prestes a ser vítima da ausência de escrúpulos de seu tio, o Duque. Contrariando os desígnios deste, Zé Soldado, o herói, supera medos e inseguranças e acaba por desmascarar os conspiradores. Salva-se um reino que continuará, assim, sob a tutela positiva de um príncipe criança, ao qual se mantêm fiéis os mais pobres e mais simples: o soldado e a aia. Opondo o poder da juventude a uma idade adulta que representa aqui a decadência dos valores, a corrupção e a desmesura das ambições, António Torrado mantém-se fiel a si mesmo e à esfera de valores que domina tanto a sua obra narrativa como a sua obra dramática.

Pelo seu entrecho aqui sintetizado, a peça parece configurar, à partida, um drama de contornos quase shakespereanos: o Duque, que já eliminara os pais do príncipe, pretende assassiná-lo, fuzilar Zé Soldado e a Aia e usurpar o poder. No entanto, «O Guarda-Vento», cuja ação decorre «num verosímil reino centro-europeu não identificado, pelos fins do século XIX» (p. 99), impõe-se sobretudo pelo cómico de personagens (com um impagável General de vistas curtas) e pelo cómico de situações e de linguagem a que se alia a exploração do suspense, ingredientes que, no seu conjunto, criam à partida condições para um espetáculo envolvente, extremamente divertido e com matéria de sobra para dar que pensar ao espectador.

Sublinhe-se, a terminar, que Torrado é um daqueles raros autores da nossa literatura dita para crianças que sempre teve a preocupação de teorizar sobre o seu ofício. O leitor adulto das peças encontra abundante matéria de reflexão quer nos textos de apresentação das peças, quer no posfácio que constitui uma espécie de poética do António Torrado dramaturgo. Aconselhe-se, desde já, a leitura atenta deste texto a todos aqueles que não entenderam que o teatro para crianças só poderá ser verdadeiro Teatro a partir do momento em que aqueles que se dedicam a essa forma de expressão artística deixem de entendê-la como uma «atividade de segunda linha» menorizadora do espectador (palavras de Catherine Dasté aqui citadas (p. 192)). Nesta ótica, podemos assegurar que o presente livro de António Torrado dá um contributo valioso para libertar o chamado teatro para crianças do estigma da infantilização.

José António Gomes

NELA – Núcleo de Estudos Literários e Artísticos da ESE do Porto